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Colares e a História

por Nuno Saraiva, em 07.06.07
Abaixo se transcreve o texto de Bulhão Pato onde é narrada ao seu estilo, a presença de "gente importante" no Convento do Carmo. (Texto disponibilizado aqui).

"A Cruz Mutilada" de Bulhão Pato

“Em 1849, Alexandre Herculano tinha trinta e nove anos e umas pernas de aço. Havia-as exercitado pelas serras dentadas, escalões e fraguedos, como valente soldado de infantaria no heróico regimento de Voluntários da Rainha.
(…) O marquês de Sabugosa e eu tínhamos nossas fumaças de bons andadores. Ufanavamo-nos de, havendo saído de uma reunião em casa do marquês de Penalva, à Patriarcal, de chibatinha na mão – das que então se chamavam Polkas – irmos até ao palácio de São Lourenço, a Santo Amaro, e, resolvendo-nos subitamente, sem pregar olho, batermos connosco em Sintra!
Contámos, com certo orgulho, a aventura a Alexandre Herculano, quando na volta, que foi também a pé no dia seguinte, lhe caímos em casa sobre a ceia, impando de glória e mortos de fome.
(…) Combinou-se uma ida a pé a Sintra, para ficarmos uma semana na serra, no convento do Carmo, que pertencia ao conde de Lavradio cunhado do marquês de Sabugosa.
(…) Era no fim de Setembro. Levantámo-nos ainda muito de noite. De saco a tiracolo, com leve bagagem, e sapato de salto raso – sapato de campino, que é o melhor -, cada um pegou no seu cajado e partimos serra de Monsanto acima, cortando para Queluz, onde devíamos almoçar.
Dos altos da serra via-se já o sol a romper, atirando horizontalmente as frechas rubras sobre o escudo brunido e esverdeado do Tejo.
(…) Até Queluz o caminho era bravo – tudo serra. Não havia estrada. Herculano seguia a passo cadenciado e militar; o corpo curvado e pendido um pouco sobre o lado direito. Pelo caminho ia-nos contando os passos do seu tempo de soldado; os dias mais felizes da sua vida, e também os da emigração, com terem tido muitas horas amargas.
(…) Terminado o almoço em Queluz, seguimos, estrada fora, até Sintra. Em Sintra comemos alguma fruta e partimos, serra acima, até ao convento do Carmo.
O mestre ia ovante! Nós não queríamos dar parte de fracos, mas suspirávamos intimamente pelo termo da viagem! (…)
(…) Pouco depois da chegada ao convento, fumegava sobre a toalha de linho, muito branca, uma grande terrina de canja. Devorámos a ceia, quase sem dar palavra e em seguida caímos na cama com o profundo sono do justo. Herculano levantou-se às sete. Cerca das onze, veio acordar-nos, e repetia-nos a seguinte cantilena:

Quatro horas dorme o santo.
Cinco o que não é tanto.
Seis o estudante.
Sete o viandante.
Oito o porco.
E nove o morto!

Nós tínhamos dormido doze!

(...) A quem estiver na vazante da vida, como eu, e tenha visto alguma coisa, aconselho que faça os seus apontamentos.
Neste relembrar do que foi, há um consolo que não se define!
Vivemos retrospectivamente. Estas memórias, que não terão valor para os outros, são preciosas para mim! Respiro horas inteiras no horizonte da mocidade, e a consciência com que escrevo desafoga-me o espírito, e dá-me uma tranquilidade salutar.
São como a confissão para o verdadeiro religioso! Confissão geral; e, di-lo-ei – embora seja censurado – posso fazê-la alto, sem que as faces se me acendam nem de leve. Pecadilhos, fraquezas, arrebatamentos próprios do temperamento, não me faltam decerto; mas criminoso não sou, nem fui.
Todo o homem que disser com verdade: “Eu nunca roubei nem dinheiro, nem honra – há mais ladrões desta espécie de moeda, e são os piores! – eu nunca caluniei ninguém, esse homem morre em paz!
(…) A pouca distância do convento do Carmo, naquela agreste e encantadora posição da nossa Sintra, a que o próprio Lord Byron, inimigo figadal dos portugueses, chama “a mais bela da Europa”, estava a cruz que impressionou Herculano.
Tinha um braço partido, e a hera, a mãe solícita das ruínas, deitara-lhe em volta os ramos verdejantes e cariciosos.
A poesia foi começada no convento do Carmo.
Abre com estes magníficos versos:

Amo-te, ó cruz, no vértice firmada
De esplêndidas igrejas;
Amo-te quando, à noite, sobre a campa,
Junto ao cipreste alvejas;
Amo-te sobre o altar, onde, entre incensos,
As preces te rodeiam;
Amo-te, quando em préstito festivo
As multidões te hasteiam;
Amo-te, erguida no cruzeiro antigo,
No adro do presbitério,
Ou quando o morto, impressa no ataúde,
Guias ao cemitério!
Amo-te, ó cruz, até, quando no vale
Negrejas triste e só,
Núncia do crime, a que deveu a terra
Do assassinado o pó!

Alexandre Herculano, censurado de ímpio e herege espécie de papão com que em certa sociedade se chegou a meter medo às crianças e até às mulheres já feitas –, era uma alma profundamente religiosa. É correr os seus livros.
Há um sabor, um perfume do misticismo santo de Jesus, em centos de versos e em relanços da sua prosa escultural.
Nesta composição da ‘Cruz Mutilada’, escrita em dias prósperos, sob o céu do nosso Outono, na convivência de dois amigos íntimos, está o coração grande e virtuoso de Alexandre Herculano. Inspiravam-no a natureza e Deus!
Aos que o acusavam de blasfemo respondia com estes versos:

……………As linhas puras
De teu perfil, falhadas, tortuosas,
Ó mutilada cruz, falam de um crime
Sacrílego, brutal, e ao ímpio inútil!"

Bulhão Pato, 1883

publicado às 10:03


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